Edição 350 – Fábrica da BYD na Bahia é autuada por questões trabalhistas
Nesta edição: Corrupção no setor público e privado | 04 de junho | Relação com os EUA | Gaokao | Futebol | Zheng He recheada
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Corrupção e reabilitação. A campanha anticorrupção, um dos pilares da era Xi, chega, não pela primeira vez, a um novo impasse: como manter o ímpeto moralizante sem paralisar o aparato estatal. Ao mesmo tempo em que o governo tenta motivar funcionários que “deitam em berço esplêndido”, uma série de promoções de oficiais previamente punidos, como o caso do jovem quadro Xie Qin, envolvido em uma bebedeira oficial em 2023, gerou forte rejeição pública. O episódio reacendeu críticas sobre a falta de transparência nos processos disciplinares e a percepção de favoritismo dentro do Partido.
Paralelamente, o Tribunal Popular de Haidian, distrito de Pequim onde se concentram as big techs chinesas, publicou um white paper alertando para o avanço da corrupção no setor privado. O documento relata que foram mais de 120 casos judiciais em quatro anos, com cifras superiores a 300 milhões de yuans. A maioria dos casos envolvia cargos de média e alta gestão, em áreas como compras, vendas e conteúdo, com empresas preferindo resolver internamente para evitar danos à reputação. As duas frentes, reabilitação de quadros e má conduta empresarial, lançam luz sobre os desafios do Partido em manter o controle interno e a confiança pública ao mesmo tempo, num cenário em que o moralismo oficial convive com práticas pouco transparentes e tensões econômicas crescentes.
Há 36 anos, nada aconteceu na Praça da Paz Celestial. Fotógrafos da Associated Press circularam por Pequim no dia 4 de junho de 2025 para registrar algo que nossos leitores já sabem: não havia nada na cidade que indicasse que aquela quarta-feira era de alguma maneira diferente de qualquer outra. Em Hong Kong, no entanto, a polícia fez inspeção surpresa em uma livraria e, no dia anterior, questionou uma artista por mastigar chiclete enquanto olhava para cima na rua e inspecionou também uma loja de incenso (pertencente a uma ex-conselheira distrital) que vendia velas por HK$6,4. Mais uma vez, o local onde até 2019 honconguenses se reuniam para relembrar os acontecimentos foi ocupado por uma feira organizada pelo governo local. A data, é claro, foi lembrada por governos estrangeiros, veículos de mídia ocidentais e Taiwan. A Foreign Policy publicou um texto especulando a respeito das possíveis razões pelas quais nenhum movimento similar ao de 1989 surgiu deste então e a australiana ABC News revelou supostos documentos vazados que indicam como o governo chinês estaria usando IAs para censurar e reescrever a história sobre esse episódio. Vale lembrar que, embora a repressão ao movimento estudantil e trabalhista pró-democracia nos dias 3 e 4 de junho de 1989 na Praça da Paz Celestial e em outras partes do país seja um fato amplamente reconhecido, o número de mortos e feridos segue em disputa – assim como a narrativa.
Foi parar na justiça. Conforme comentamos no final do ano passado, a fábrica da BYD em Camaçari na Bahia foi denunciada de forma anônima por más condições de trabalho para os operários chineses, com cobertura pela Agência Pública. Uma nova denúncia foi feita em janeiro, relativa ao aumento da vigilância dos funcionários brasileiros. A primeira fábrica da empresa chinesa ainda não se encontra em operação, mas já está sob investigação do Ministério Público do Trabalho (MPT) – que havia resgatado funcionários chineses contratados por uma das empresas terceirizadas que estava montando a fábrica. A ação civil pública foi protocolada no final de maio, conta o Poder 360, podendo custar R$ 257 milhões para a BYD em danos coletivos e também compensação individual para os operários prejudicados. Após a denúncia em novembro, a empresa encerrou o contrato com a terceirizada e publicou uma nota afirmando que não tolera tais situações e agora afirma que vai responder nos autos do processo. Além do MPT, uma auditoria do Ministério do Trabalho e Emprego concluiu na terça-feira (03) que houve responsabilidade direta da BYD pela vinda irregular de 471 funcionários da China, já que encontraram evidência de subordinação direta. A inspeção concluiu também irregularidades em três áreas: trabalho forçado, condições degradantes e jornada exaustiva, conforme detalhado no site do Ministério.
Call me maybe. Estávamos todos distraídos pela briga entre Elon Musk e Donald Trump e a notícia de que Trump e Xi Jinping conversaram por telefone quase passou despercebida. Mas o presidente dos EUA confirmou a ligação (e ainda disse que foi “muito boa”) na quinta-feira (05) e afirmou que fará uma visita ao líder da outra superpotência em breve. Pequim também confirmou que a ligação ocorreu, mas o texto na Xinhua critica de forma contundente a postura estadunidense após o acordo que havia sido feito em Genebra em maio. O lado chinês não falou nada sobre a visita. Além do momento tenso internamente nos EUA, a ligação ocorre quando a disputa comercial passa de guerra tarifária à guerra nas cadeias de suprimento, conforme este artigo do The New York Times (NYT) argumenta.
Parece que o jogo virou. Foi-se o tempo em que os EUA se beneficiava do brain drain de outros países. Enquanto o governo declara guerra contra universidades e centros de pesquisa, censurando temas, cortando verbas, impedindo a matrícula de alguns estudantes estrangeiros (e prendendo outros), pesquisadores reavaliam suas opções. Segundo a revista Nature, entre janeiro e março deste ano houve um aumento de 35% nas buscas locais por oportunidades internacionais em comparação com o mesmo período em 2024. Nesse contexto, a China se beneficia – e rápido: o NYT conversou com um pesquisador vencedor de prêmio Nobel residente nos EUA que, apenas horas depois de especular sobre o brain drain no Bluesky em fevereiro, recebeu uma oferta para levar seu laboratório para qualquer cidade chinesa que desejasse. Como explica a reportagem, não é apenas a promessa de verbas que atrai os pesquisadores, mas a ideia de estabilidade. A China vem priorizando o investimento em ciência e tecnologia há muito tempo, com uma visão de longo prazo, com projetos como o Made in China 2025 (de 2015), e de forma holística, como os estímulos para o consumo de tecnologias nacionais e um foco na educação tecnológica em todas as etapas do ensino. Essa estratégia vinha dando frutos na forma de desenvolvimento de talentos nacionais e do retorno de pesquisadores chineses formados internacionalmente; agora, com esse empurrãozinho de Trump, a China pode se tornar o novo centro tecnológico do mundo.
Saideira. A cultura de beber para fazer a social do trabalho não é prerrogativa chinesa. Há tempos isso é fonte de discussão, incluindo sobre os recortes de gênero de quem se beneficia do networking da mesa de bar. Na China, uma dupla de acadêmicos decidiu colocar a relação entre negócios e álcool como tema de sua pesquisa. No Sixth Tone, Kang Siqin conta sobre algumas das suas descobertas das dinâmicas sociais de um banquete de negócios, e como aquela máxima de “a bebida entra, a verdade sai” é uma das premissas presentes sob a ideia de transparência e sinceridade entre parceiros de negócios.
Se a inteligência artificial é usada por jovens chineses para estudar e (lamentavelmente) para lidar com desafios psicológicos, era mesmo inevitável que ela aparecesse também no gaokao, o mega vestibular responsável pela definição da trajetória profissional dos estudantes. Como conta o China Media Project, foi anunciada no começo deste mês uma iniciativa de três ministérios (da Educação, da Administração do Ciberespaço e da Segurança Pública) para coibir fraudes associadas ao gaokao por meio do uso de IAs. As fraudes são produtos como provas que se dizem vazadas (e seus gabaritos) e simulados que prometem serem capazes de prever até 80% das questões que devem cair no exame, tudo gerado com inteligência artificial. A iniciativa triministerial deixa claro que esses crimes serão tratados com a mesma gravidade que outras formas de criação e disseminação de rumores online, disrupção da ordem pública e circulação de falsos conteúdos a respeito da prova, que são crimes contra a estabilidade social. As provas do gaokao começaram hoje (07) e ocorrem ao longo de alguns dias, a depender de cada província.
Não dá para ser bom em tudo. Apesar do investimento bilionário e do apoio pessoal de Xi Jinping, o futebol masculino na China segue em crise, e à beira de mais uma eliminação precoce nas eliminatórias para a Copa do Mundo de 2026. A frustração se acumula e gira ao redor de um país que já liderou o quadro de medalhas olímpicas e possui a segunda maior economia do mundo, mas segue sem conseguir formar 11 jogadores de nível internacional. Para alguns, o problema não está nos campos, mas no modelo de gestão, que sufoca a criatividade, inibe a cultura de base — e isso sem falar da corrupção. O caso do ex-técnico Li Tie, condenado a 20 anos por suborno e manipulação de resultados, e a derrocada do Guangzhou Evergrande, gigante bancado por incorporadoras em colapso, são sintomas desse sistema que mistura política, negócios e futebol, com resultados trágicos para o esporte. Enquanto Xi sonha com glórias futebolísticas, o futebol segue emperrado e a bola rola melhor fora das quatro linhas do que dentro delas.
Zheng He foi um grande explorador chinês do século XV. Sob seu comando, o império da China chegou a praticamente todos os cantos do mundo. Esta seção é inspirada nele e te convida a explorar ainda mais a China.
Por essa você não esperava: não é só a sua tia que virou fã de dramas chineses (os C-Dramas). Uma das maiores punk rockers do mundo também é — a cantora e escritora Patti Smith. E levantou uma discussão sobre audiências esnobes.
Escritor: o entregador Hu Anyan é um fenômeno literário e uma das vozes novas da escrita chinesa — parte de um grupo que não vem de formação intelectual e tem origens na classe trabalhadora. Um texto seu publicado no Douban chamou atenção em 2020 e virou livro em 2023 (e ganha tradução este ano para o inglês). Este longo perfil no Financial Times conta mais sobre ele.
Máquina de escrever: quem nos acompanha sabe que já postamos sobre o fascinante processo de adaptar os caracteres chineses para a digitação. Este texto no Made in China Journal conta sobre o modelo MingKwai, lançado em 1947 e a primeira máquina de escrever com um teclado e que tinha apenas um protótipo — que alguém achou em um porão e postou num grupo de Facebook.
Comida: um mergulho na culinária de Sichuan a partir de conversas e experiências com os donos de um restaurante familiar em Shanghai.
Estreia: chegando com dois anos de atraso do lançamento, o blockbuster de ficção científica Terra à Deriva 2: O Destino deve estrear em junho nos cinemas brasileiros (ainda que não apareçam horários por enquanto). O primeiro filme foi baseado em um conto de Cixin Liu, e o segundo explora mais ainda o universo da obra.
Dissertação: a pesquisadora Cherie Wong compartilhou no BlueSky um resumo da sua tese sobre a diáspora chinesa e as formas de dissidência política ao Partido Comunista da China.
Quão difícil é o gaokao? Este vídeo do South China Morning Post explica como a prova funciona.
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